terça-feira, 16 de setembro de 2014

Bodas de Ouro


Seu Aristeu estava desenganado. À beira da morte. Não levantava da cama há um mês. Os médicos entregaram os pontos e entenderam que não adiantava prender o velhinho no hospital. Deram-lhe a chamada morte digna: em casa, ao lado de sua velha companheira, a Dona Matilde. 

E ela rezava para que seu marido chegasse com vida, pelo menos até o dia dez de maio daquele ano, data em que completariam cinquenta anos de casados, ou seja, fariam Bodas de Ouro. Pelo menos isso, para contar aos netos, bisnetos e demais gerações. Para tanto, Dona Matilde, todos os dias, acendia 10 velas para Nossa Senhora da Aparecida, e jogava 10 rosas brancas no mar para Yemanjá.  

E assim, com a graça da Santa e do Orixá, Seu Aristeu resistiu até o tal dia. Toda a família – eram seis filhos, 15 netos, 5 bisnetos, mais os maridos e esposas dos filhos, dos netos e até uma namoradinha de um bisneto – estava presente no quarto do quase-defunto, cantando parabéns, com um bolo no pé da cama. 

Ao término da homenagem, quando todos foram embora, Dona Matilde sentou-se na cama ao lado de Seu Aristeu e lhe deu um beijo na testa. Ela estava feliz, apesar da incômoda situação: a iminente morte de seu marido. 

Até aí tudo bem. O problema é que Seu Aristeu resolveu desabafar. Discutir a relação no leito de morte. 

- Matildinha, eu preciso lhe confessar uma coisa. Nunca suportei o seu arroz.

- O quê?

- Aquela papa branca que você me fez comer a vida inteira, e ainda tinha que fazer cara de feliz. Graças a Deus, nunca mais vou precisar comer aquilo de novo.

- ...

- E aquele seu espirro, quando você estava com alergia? Céus, as paredes tremiam, me dava taquicardia. Não sei como não morri de enfarto, nestes 50 anos.

- Então é por isso que você nunca me disse “saúde”?

- Mas nada se compara com a camisola da noite de núpcias, que você usa até hoje. Aquela coisa roxa de bolinhas rosas era o maior broxante, eu tinha que imaginar a Sophia Loren nua pra conseguir dar no coro. Por Deus, Matilde, aquela coisa já tá fedendo, vê se joga fora, porque nem pra pano de chão o negócio serve mais.

- E eu achando que você sentia tesão, Arizinho...

- E tem mais.

- Mais?

- Tem a Paulinha.

- Que Paulinha?

- Aquela empregada que você contratou há uns trinta anos atrás. Nós tivemos um caso. Coisa rápida. Mas inesquecível. Eu nunca esquecerei a Paulinha...

                                     ################################### 

Dona Matilde saiu do quarto e não voltou mais. 

Seu Aristeu empacotou dois dias depois. Dizem que foi por causa da Dona Matilde, que não acendeu mais vela pra Santa, nem jogou mais flor pra Mamãe Sereia.

Mas ninguém entendeu quando a viúva não foi ao enterro. E acharam estranho o Seu Aristeu ser enterrado vestido com uma velha camisola roxa com bolinhas rosas. Ordens da D. Matilde, disse um dos filhos.   

Na verdade, Dona Matilde não se importou com o fato de nunca ter recebido um “saúde” quando espirrava. Também não se incomodou com o nojo de seu marido pela sua camisola, que o acompanhará por toda a eternidade. Nem o caso extraconjugal do falecido lhe aborreceu.  

Mas não gostar de seu arroz, ah, isso não. Era receita de família.
 
Jamais perdoará o Aristeu por isso.

 

 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

eu e a lua

distraídos, eu e a lua
numa noite escura e nua
despida de estrelas e certezas
vestida com alegrias e tristezas

pensativos, eu e a lua
em busca da poesia vaga e crua
ainda que com rimas óbvias e banais
estrofes tolas e carnais

e assim ficamos, eu e a lua
sonhando a estrada que se insinua
esperando a rosa amarela se abrir
o lírio da montanha sorrir

e até que o vento leve os versos desta poesia
e suas palavras misturadas com o sabor da maresia
um poeta, distraído e pensativo, continua...

no infinito da eternidade, eu e a lua.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

epifania parte II


então, viver é isso
contrato de adesão
ser feliz é a obrigação
ter querer possuir
a todo custo
contra tudo e contra todos
rir dançar cantar
manter o ritmo
seguir o rebanho
beber comer  fumar
kkkkk hihihi hahahaha
funk cerveja futebol
novela das oito carnaval...

então, viver é só isso
e pronto
é só ser normal
fazer o que todos fazem
tudo sempre igual
falar discutir gritar
palavrões e coisa e tal
depois fazer as pazes
tem a mesa do bar 
pagode no fundo do quintal...

então, viver é somente isso
e mais nada
é encontrar alguém
um sexo oposto ou não
ficar beijar se enrolar
oi tudo bem
tchau até mais
amanhã é outro dia
amor pra quê
pra que serve poesia?
 
então, viver é isso...
 
confesso que falhei
confesso meu fracasso
confesso que tentei

tentei beber
no copo deste projeto
de alegorias e fantasias
e o gosto de mel me embrulhou
a alma

até quis ser um igual
compartilhar desta felicidade insana
confraternizar com a estupidez santificada
da sociedade mundana
comemorar o ridículo do absurdo
da normalidade banal

agora o que resta
é encarar o espelho e tentar
montar o quebra-cabeças
do seu reflexo quebrado
em pedaços de dúvidas
do que não quis,
do que não pude
ou do que não soube ser

e assim
sob a chama bruxuleante
de uma vela que insiste
em não apagar
chegar
a um improvável diagnóstico
para uma cura vadia
que me faça beber
com nojo e vontade
dessa infeliz taça 
de felicidade coletiva

um verdadeiro brinde
ao fracasso do meu fracasso


quarta-feira, 2 de julho de 2014

elucubrações

se eu fosse Deus...

veria o universo através
da pétala de uma flor

não correria o risco
de vê-lo sem amor

todo o infinito
na palma de minha mão

toda a eternidade
numa fração de segundo

mas sou, num mar de areia
apenas um grão

e que diferença faço nesse mundo?

se eu fosse Deus
viveria a imaginar...

teria ideias secretas
e as esconderia
num mágico lugar:

                             [o tolo coração dos poetas

segunda-feira, 2 de junho de 2014

borboleta

da janela de casa
avisto a montanha, a palmeira
e o sabiá

rezo neste altar particular

numa manhã ensolarada
pousou-me no braço
uma borboleta
que se pôs a me observar

retribui o olhar
sem nada poder lhe falar

ficamos os dois agradecidos
em silêncio profundo
dois universos distintos
juntos no mesmo mundo

nenhum de nós queria o adeus
diante da inusitada presença
de Deus


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Mamãe

No início era assim:
 
"Bilu-bilu, cadê o bebezinho lindo da mamãe?; não chora, já vou dar o leitinho; vamos tomar um bainho gostoso?; de quem é esse queixinho? é da mamãe..."
 
Depois:
 
"Já escovou os dentes? Tá na hora de tomar banho; se não comer tudo não ganha sobremesa, quero ver o prato limpo; chega de comer chocolate!"
 
E depois...
 
"Para de jogar bola, olha as minhas samambaias! Já fez o dever o casa?; Não é possível, não tem nem dez minutos que você sentou pra estudar e já tá chutando essa bola de novo?; Chega de comer chocolate!"
 
Continuando...
 
"Você não estuda e tira sete e meio... se estudasse tiraria dez!; A nota dos outros não me interessa, me interessa a sua, você é que é meu filho e não os outros!; Vou falar com o seu pai que você só sabe tocar violão e ler Homem-Aranha. E para de comer chocolate!"
 
E os anos passam...
 
"Você já mediu a sua pressão hoje? Quanto tempo você não faz um exame de sangue?; Tem que mandar o seu filho ir estudar. Ele não pode ficar no computador o dia inteiro. Ele não estuda e tira nota boa, já pensou se ele estudasse? Ele precisa se alimentar melhor, não pode ficar comendo só macarrão com carne moída. E ele tem que parar de comer chocolate."
 
Pois é...
 
Essa é a minha mãe: a expressão do amor mais puro e verdadeiro que eu conheci nessa vida.
Sentimento que dispensa palavras e traduz-se na mais bela poesia.
Se amor tem nome ele se chama Josette.
 
Te amo, mãe!

Ah, só mais uma coisa: você também precisa parar de comer chocolate! ;)


segunda-feira, 7 de abril de 2014

O colar de Maria Alice

- João Alfredo, fecha esse colar aqui pra mim.
- Posso acabar de dar o nó na gravata?
- Não, tem que ser agora!
- Tá bom, me dá isso aqui... pomba, Maria Alice, esses fechos estão ficando cada vez menores. Não tô conseguindo.
- Mas vai ter que conseguir! Comprei esse colar especialmente pro batizado do nosso neto. Vai, prende logo isso.
- Não dá, eu tô sem unha, acabei de cortar.
- E isso é hora de cortar a maldita unha?
- E eu lá sabia que teria que fechar esse maldito colar?!
 
João Alfredo largou o colar em cima da mesinha de cabeceira. Sentou-se na cama, tirou os óculos e levou as duas mãos ao rosto, balançando a cabeça pra lá e pra cá.
 
- Não aguento mais isso, Maria Alice. Preciso desabafar.
 
Maria Alice não entendeu nada. O que era aquilo? Um desabafo? Após trinta anos de casados, seu marido resolveu discutir a relação? E na hora do batizado do Paulo André? Não, vai ver era só o fato dele não conseguir fechar o colar.
 
- Joãozinho, meu amor, fica calmo, dá o nó na sua gravata, depois você tenta novamente fechar o meu colar, sem estresse...
- Eu não tô falando desse colar, já falei que não há como fechar essa joça. Pelo simples fato de que eu não consigo abrir o fecho da argola. Se eu não consigo abrir o fecho da argola, não há como colocar a argolinha dentro da argola, ou seja, não dá pra fechar essa porcaria. Entendeu ou quer que eu desenhe? Eu estou falando de mim, preciso confessar uma coisa.
 
Confissão? Não era desabafo? Maria Alice estava confusa. Não sabia lidar com aquela situação. Essas palavras nunca tinham saído da boca do João Alfredo naqueles trinta anos de casamento.
 
- Joãozinho, não dá pra fazer essa confissão ou desabafo, sei lá, depois do batizado do nosso netinho?
- Não, tem que ser agora.
 
Maria Alice ficou tensa. Nervosa. Em estado de choque.
 
Não, Maria Alice não queria ouvir. Não queria ouvir que seu marido não a amava mais. Pior: que nunca a amou. Que todos esses anos ele fingiu ser um esposo apaixonado, cumpridor de seus deveres.
 
Não, Maria Alice não queria ouvir. Não queria ouvir que seu marido tinha outra. Que sempre a traiu, e que agora estava apaixonado pela amante e ia largar tudo pra ficar ela.
 
Não, definitivamente Maria Alice não queria ouvir. Não queria ouvir que, sei lá, ele era gay e resolveu sair do armário, e que depois de trinta anos de uma relação heterossexual, ele resolveu viver uma paixão enrustida com outro ser do mesmo sexo.
 
E, realmente, não foi nada disso que Maria Alice ouviu.
 
- Eu não consigo entender o que os padres falam. Começou nas missas que mamãe me levava aos domingos. Quando o padre começava o sermão, eu não entendia nada. Depois veio o nosso casamento. Tirando a parte do "você aceita Maria Alice como sua legítima esposa?" eu não entendi patavinas do que o padre falou. Idem nas nossas bodas de prata; no batizado, primeira comunhão e casamento da Maria Regina.
- Mas você chorava tanto no casamento da Maria Regina...
- Exato! E por quê? Porque eu não entendia nada que o padre falava. Você ouviu, Maria Alice, NADA!
 
"Imagina quanta coisa eu perdi, como eu poderia ter sido um homem melhor se entendesse as missas, os sermões. Eu estou vivendo em pecado esses anos todos. Eu sequer entendia as penitencias que me eram dadas quando me confessava. Rezava sempre dez Pais Nossos e dez Ave Marias, por via das dúvidas. Não, não vão me deixar entrar no Céu, estou certo disso.
 
Agora, o batizado do Paulo André. Mais uma vez sem entender nada. Eu não vou aguentar, Maria Alice!"
 
Maria Alice relaxou. Seu casamento estava aparentemente a salvo. Ele ainda a amava, não tinha outra e não era gay.
 
Só uma coisa continuava lhe preocupando: o fato dele não conseguir fechar o seu colar novo.
 
Isso, sim, era o problema a ser resolvido.   

terça-feira, 11 de março de 2014

O sorriso de Deus

Os longos cabelos cobertos de neve, presos num rabo de cavalo, denunciam a sabedoria do tempo escondida em sua alma.
 
As rugas e marcas de expressão espalhadas em seu rosto me remetem a um jardim de margaridas brancas, que ao serem osculadas pelo vento, produzem a mais formosa melodia.
 
Seu olhar foca a linha do horizonte. O encontro do céu de Oxalá com o mar de Yemanjá. O mais belo ponto de força da natureza, que não existe. É somente uma ilusão de ótica. Ao contrário da simpática senhorinha parada na minha frente, na beira do mar, imortalizada pelo tempo.
 
Talvez ela esteja fazendo uma prece. Ou pensando no seu falecido marido. Talvez ela esteja lembrando de cada um dos momentos felizes em que viveu em sua jornada terrena. Pode ser que ela esteja decidindo se vai comer um biscoito Globo ou uma empadinha de queijo. Ou no que vai preparar para o jantar. Quem sabe ela não está apenas lembrando de um cachorrinho de estimação que a deixou há trinta anos atrás?
 
Vai saber...
 
Ela dá três passos em direção ao mar. A primeira onda vem lhe saudar. A segunda lhe beija os pés e tornozelos. As demais querem apenas com ela brincar.
 
Ela se curva, molha suas mãos e faz o sinal da cruz. Várias vezes. Ela estende os braços em direção aos céus, com as palmas das mãos viradas para cima, como quem agradece por alguma coisa, talvez por aquele momento, talvez por alguma graça, talvez por... Não. Ela apenas agradece. Pela vida.
 
As ondas batem em suas pernas finas, enrugadas e firmes e a senhorinha lá, brincando e conversando com as ondas, se sentindo parte integrante daquele quadro de areia, mar, espuma e conchas.
 
Ela lembra de todas as coisas que as ondas lhe trouxeram: alegrias, tristezas, amores.
Ela lembra de todas as coisas que as ondas lhe levaram: alegrias, tristezas, amores.
 
Ela sabe que as ondas não cessam de ir e vir. E aguarda as próximas ressacas e calmarias. Porque ela sabe que a vida é assim.
 
Ela não se desespera mais com as tempestades da vida. Porque ela usa um agasalho impermeável. O agasalho da fé. Ela sabe que tudo sempre passa. Que uma hora o sol se esconde, que as nuvens choram, afinal as flores tem que brotar. Mas o sol sempre volta.
 
Quando ela finalmente sai do mar, o sorriso lhe enfeita a face. Mas esse sorriso não é dela. Ela apenas empresta, gentilmente, o seu rosto para o Criador.
 
Esse sorriso... é o sorriso de Deus. 
 
 

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Lágrima azul e branca

Então chegou o carnaval! Preparo minha fantasia, tomo três comprimidos de engov, saio de casa na sexta-feira e, com sorte, renasço das cinzas numa quarta-feira, curando a ressaca e a rebordosa ao som de DEZ, NOTA DEZ.
 
Nada disso. Não nasci para ser folião. E a multidão não me suporta. Enfim, carnaval pra mim é um feriadão, onde eu curto minha praia, tomo minha cervejinha, e assisto ao desfile confortavelmente na minha casa, no fresquinho do ar condicionado, com uns petisquinhos.
 
Aliás, via. Até dos desfiles enjoei, os sambas (já não sou muito fã) ultimamente tem sido insuportáveis. Recorro, então, a filmes e livros, já que a animação não é muito o meu forte.
 
Mas houve um tempo em que era divertido ver os desfiles. A metade salgueirense da minha família (na qual me incluo) zoando a outra metade mangueirense, sempre constituiu uma disputa à parte.
 
De uns tempos pra cá, contudo, só assisto ao desfile do Salgueiro. E sempre digo as mesmas coisas. Que o meu Salgueiro foi roubado, que a Globo é Beija Flor e por isso ela ganha (ou quase ganha) todo ano, que a Mangueira é cafona, verde e rosa não combinam.
 
E que a águia da Portela estava linda.
 
Já falei que não sou muito fã de samba, mas admiro alguns. E o meu "eu-poeta" nutre uma simpatia quase amor pela Portela.
 
Também, pra quem tem a poesia correndo nas veias, é covardia. Senão, vejamos.
 
Paulinho da Viola ("Solidão é lava, que cobre tudo, amargura em minha boca, sorri seus dentes de chumbo. Solidão palavra, marcada no coração, resignado e mudo no compasso da desilusão.").
 
Clara Nunes (O mar serenou quando ela pisou na areia. Quem samba na beira do mar é sereia.")
 
Candeia (Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar... e se alguém um dia perguntar, diga que eu só vou voltar... quando eu me encontrar.")
 
E, last but not least, minha Deusa, minha rainha... Marisa Monte. Sua voz, por si só, já é poesia: o verdadeiro canto da sereia. Dispensa palavras. E ainda assim, ela floreia nossa vida com versos perolados. "Bem que se quis, depois de tudo ainda ser feliz... e o que que a gente não faz... por amor."  
 
Teve também o desfile de 1984, Contos de areia. "É cheiro de mato, é terra molhada, é Clara guerreira, lá vem trovoada." A última estrofe diz que a Portela "faz da vida poesia". Sim, sim, sim.
 
Esse ano vai ser tudo igual. Vou assistir ao desfile do Salgueiro, cujo samba tem um refrão pra macumbeiro nenhum botar defeito: "Oxum, Yemanjá, Yansã, Oxóssi caçador. Ossanha, Ogum, Kaô meu pai Xangô". Vou dizer que se ele não ganhar é marmelada. Vou dizer que a Globo é Beija Flor  e que a Mangueira estava cafona como sempre (gente, verde e rosa não dá, sério, agride a minha visão). 
 
Mas, acima de tudo, haverá uma voz poética - cuja nascente encontra-se em algum canto de minha alma - que, ao extrapolar a barreira do corpo físico, dirá que a águia da Portela estava linda.
 
Voz essa que sairá acompanhada de uma invisível lágrima azul e branca.

E que o Salgueiro não me ouça.
   

domingo, 23 de fevereiro de 2014

baú de memórias

no baú de memórias
moram esquecimentos
perdidos

um mingau de aveia
alimenta botões
que leem gibis do Tio Patinhas

um velho violão sem corda
cantarola a dor de uma bola
chutada pra fora

um lenço com álcool
num pescoço que tosse

um papelzinho molhado
numa testa que soluça

inutilidades adultas

início que explica
o meio
e não justifica o fim

no baú de memórias
um eu abandonado
pior...

um eu esquecido

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Material escolar

- Uma pasta fina transparente de elástico, uma verde com trilho e uma transparente amarela com vinte sacos.
- Ok, tá tudo aqui. Mais alguma coisa?
- Uma pasta classificadora.
- Como?
- Classificadora.
- Com sacos?
- Não sei. Acho que não, se fosse com sacos tinha escrito "com tantos sacos", que nem a amarela que eu pedi.
- Bem, tem as sanfonadas.
- Mas se fosse a sanfonada eles diriam, não?
- Mas por que eles estão pedindo uma pasta classificadora?
- Provavelmente para "classificar" alguma coisa. Na verdade não existe um porquê. Eles jogam em nossos peitos uma lista enorme de material escolar que a gente entrega no primeiro dia de aula e nunca mais vê a cor das coisas.
- Bem, tem as pastas sanfonadas...
- Moça, esquece a pasta classificadora. Depois eu pergunto lá pra professora que pasta é essa. Vamos em frente.
- Tá bom.
- Colar polar arte 40g, cola bastão, cola plástica 90g, cola relevo... peraí! Por que existe tanta cola!?
- Cola relevo não tem, tá em falta.
- Afff... eu nem sei o que é uma cola relevo.
- Mais alguma coisa?
- Esquadros, transferidor, uma régua de 20cm.
- Ok, ok e ok.
- E uma régua geométrica.
- Já te dei.
- Não, você me deu uma régua de 20cm.
- Então, o senhor quer outra?
- Não, eu quero uma régua geométrica.
- Mas, senhor, toda régua não é geométrica?
- Não sei, minha senhora, eu sou advogado, não entendo de geometria, mas se a escola pediu uma régua de 20cm e uma outra geométrica, utilizando um pouco de bom senso (coisa que falta nessa maldita lista), não me parece que sejam a mesma coisa. Como dizia o grande filósofo Zaratustra, "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa."
- Zara quem?
- Deixa pra lá. E a régua geométrica?
- Eu não sei o que é uma régua geométrica.
- Nem eu. Estão, ela vai fazer companhia para a pasta classificadora. Tinta acrílica acrilex 37ml bege.
- Ah! isso eu sei o que é! Tem amarelo, verde, azul, vermelho, preto, branco e rosa.
- Aqui tá pedindo bege...
- Bege não tem.
- Não faz isso comigo, moça, olha direitinho...
- LIDIANE TEM MAIS DESSA TINTA NO ESTOQUE?
- NÃO, SÓ ESSAS QUE ESTÃO AÍ!
- É, senhor, não tem bege.
- Vai a vermelha, então.
- Mas a escola quer bege...
- A escola quer me tirar a paciência e o dinheiro que eu não tenho no primeiro mês do ano, é isso que a escola quer. Ela que fique satisfeita com a vermelha.
- Leva a verde, então, tá tão bonito esse tom...
- Não, eu gosto de vermelho, vai o vermelho e pronto.
- Acabou?
- Não. Papel de bala rococó.
- Quê!?
- Tá escrito aqui, ó!
- Não conheço bala rococó.
- Moça, não é a bala que é rococó, é o papel.
- Tem certeza?
- Não. Mas chega. Papel de bala rococó é o fim. Isso serve pra quê?
- Deve ser pra embrulhar a régua geométrica e a pasta classificadora...     

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Domingo no Zoo

(Manoela) - Pai, eu quero ver a girafa.
(João Gabriel) - Eu quero ver corujas.
(André) - E eu quero ver o hipopótamo.

E assim fomos ao Zoo. Um calor infernal. Poderia estar na praia, mas não, os filhos querem ver bichos num lugar quente e cheio de gente que parece que nunca viu um macaco na vida, e faz de tudo para conseguir o melhor ângulo do jacaré (se é que existe).

Entramos. Araras, araras e araras. Cobras e lagartos.

(M) - Pai, cadê a girafa?
(JG) - Eu quero as corujas!
(A) - Calma, acabamos de entrar, devem estar mais pra frente.

Quatrocentos e setenta e sete tartarugas depois, eis que surge o ... HIPOPÓTAMO!

Abro um parêntesis para tecer algumas considerações sobre o hipopótamo. Sempre nutri uma especial admiração por ele. Palavra de origem grega que quer dizer cavalo do rio, o bicho fica lá, só se banhando na paz e na tranquilidade. Ele poderia querer ser um cavalo de verdade, um elefante, ou ainda um forte e bravo rinoceronte. Mas não, ele tem total consciência da sua real missão na terra: não servir para absolutamente nada. Talvez ele tenha várias teses sobre a vida, só que ninguém nunca lhe perguntou e a chance disso vir a acontecer algum dia é nula. Então, o nosso obeso mamífero se resigna com a sua inutilidade terrena e vive em paz. É ou não é um sábio?

(M) - Bora pai, eu quero ver a giraaaaaaaaaaafa...
(JG) - Olha, corujas!!!

Após o João tirar setenta e seis fotos das cinco corujas enjauladas, o que levou aproximadamente trinta e sete minutos, seguimos nossa jornada animal.    

Duzentos e setenta e seis macacos depois (ainda dizem que os coelhos é que são férteis), nos deparamos com a jaula da preguiça.

Pausa. A preguiça parece um macaco. Um macaco que nasceu, assim, meio lerdo. Um erro no processo genético do macaco. Talvez seja por isso que ela é tão encantadora. Porque assim como o hipopótamo, ela também não serve pra nada. Mera expectadora do universo. Fica ali enroscada no galho da árvore, esperando o mundo acabar em barranco pra ela morrer encostada Só que o hipopótamo vê o mundo de cabeça erguida. Ela nem isso. Vê tudo de cabeça pra baixo.

(M) - Pai, a GIRAFAAAAA!!
(A) - Ok, ok, ok, vamos atrás da girafa.

Trezentos e cinquenta e dois periquitos, quarenta e três papagaios, quatro urubus. E, com a graça de Deus, a girafa!

(M) - Pai, não tô conseguindo tirar a foto, ela tá dentro da casa dela, tá muito longe!

Beleza. Lei de Murphy. De todos os milhões de bichos do Zoo, por que logo a girafa tinha que estar caseira naquele momento?

(M) - Pai, manda a girafa sair da casa, eu preciso tirar uma foto dela pra mandar pra mamãe por WhatsApp!!! Andaaaaa...

Como o meu "girafês" não estava lá essas coisas, mantive a calma nessa situação de stress e fiz o que pude.

(A) - Filha, nós vamos ficar aqui o tempo que for preciso pra você bater a sua foto.

Vinte e oito minutos depois, nada da idiota da girafa sair da casa.

(JG) - Olha, tem um pônei junto com a zebra!
(M) - Eu quero ver o pônei!

Louvado seja esse pônei!

Bem, o pônei é um cavalo com nanismo. É tipo fofo e acabou tirando a graça da zebra. Ninguém dava atenção a ela. Não com um pônei fofinho do lado. Sei não, mas periga da zebra ter um ataque de ciúmes. E o pônei...

De repente, uma gritaria atrás de nós, a população enlouquecida correndo com suas câmeras na mão. Fiquei imaginando: seria um astro do rock, uma modelo famosa, um artista de televisão, Papai Noel? Não, nada disso. Era a girafa que tinha saído da casa.

Peguei a Manozinha pela mão e saí correndo com ela no meio da multidão, câmera em punho, lutando bravamente braço a braço com o povo suado e fedido pelo melhor ângulo deste ruminante pescoçudo. Afff... Missão cumprida. O que um pai não faz pela filha.

Nessa altura, já estava no bagaço. Chegamos rápido até a saída, pois todos os felinos estavam meio mortos com o calor, pareciam feras empalhadas com a língua de fora.

Na saída, uma lojinha de souvenir, onde me fizeram comprar uma corujinha de pelúcia, a Jujuba, nova moradora do meu carro.

Para fechar o passeio, a passarela da fauna. Uma ponte cuja única função era nos deixar mais longe do carro. E, consequentemente, mais cansados, suados e com sede. Enquanto desfilávamos pela tal passarela, avistamos antas, emas, galos e... veados.

Não, não pretendo dissertar sobre os veados. Tipo, nada contra esses formosos cervos. Mas como já disse antes, prefiro os hipopótamos.

Eles, sim, sabem das coisas.