Seu
Aristeu estava desenganado. À beira da morte. Não levantava da cama há um mês. Os
médicos entregaram os pontos e entenderam que não adiantava prender o velhinho
no hospital. Deram-lhe a chamada morte digna: em casa, ao lado de sua velha
companheira, a Dona Matilde.
E ela
rezava para que seu marido chegasse com vida, pelo menos até o dia dez de maio
daquele ano, data em que completariam cinquenta anos de casados, ou seja, fariam
Bodas de Ouro. Pelo menos isso, para contar aos netos, bisnetos e demais
gerações. Para tanto, Dona Matilde, todos os dias, acendia 10 velas para Nossa
Senhora da Aparecida, e jogava 10 rosas brancas no mar para Yemanjá.
E assim,
com a graça da Santa e do Orixá, Seu Aristeu resistiu até o tal dia. Toda a
família – eram seis filhos, 15 netos, 5 bisnetos, mais os maridos e esposas dos
filhos, dos netos e até uma namoradinha de um bisneto – estava presente no
quarto do quase-defunto, cantando parabéns, com um bolo no pé da cama.
Ao
término da homenagem, quando todos foram embora, Dona Matilde sentou-se na cama
ao lado de Seu Aristeu e lhe deu um beijo na testa. Ela estava feliz, apesar da
incômoda situação: a iminente morte de seu marido.
Até aí
tudo bem. O problema é que Seu Aristeu resolveu desabafar. Discutir a relação
no leito de morte.
-
Matildinha, eu preciso lhe confessar uma coisa. Nunca suportei o seu arroz.
- O quê?
- Aquela
papa branca que você me fez comer a vida inteira, e ainda tinha que fazer cara
de feliz. Graças a Deus, nunca mais vou precisar comer aquilo de novo.
- ...
- E
aquele seu espirro, quando você estava com alergia? Céus, as paredes tremiam,
me dava taquicardia. Não sei como não morri de enfarto, nestes 50 anos.
- Então é
por isso que você nunca me disse “saúde”?
- Mas
nada se compara com a camisola da noite de núpcias, que você usa até hoje.
Aquela coisa roxa de bolinhas rosas era o maior broxante, eu tinha que imaginar
a Sophia Loren nua pra conseguir dar no coro. Por Deus, Matilde, aquela coisa já
tá fedendo, vê se joga fora, porque nem pra pano de chão o negócio serve mais.
- E eu
achando que você sentia tesão, Arizinho...
- E tem
mais.
- Mais?
- Tem a
Paulinha.
- Que
Paulinha?
- Aquela
empregada que você contratou há uns trinta anos atrás. Nós tivemos um caso.
Coisa rápida. Mas inesquecível. Eu nunca esquecerei a Paulinha...
Dona
Matilde saiu do quarto e não voltou mais.
Seu
Aristeu empacotou dois dias depois. Dizem que foi por causa da Dona Matilde,
que não acendeu mais vela pra Santa, nem jogou mais flor pra Mamãe Sereia.
Mas
ninguém entendeu quando a viúva não foi ao enterro. E acharam estranho o Seu
Aristeu ser enterrado vestido com uma velha camisola roxa com bolinhas rosas.
Ordens da D. Matilde, disse um dos filhos.
Na verdade,
Dona Matilde não se importou com o fato de nunca ter recebido um “saúde” quando
espirrava. Também não se incomodou com o nojo de seu marido pela sua camisola,
que o acompanhará por toda a eternidade. Nem o caso extraconjugal do falecido
lhe aborreceu.
Mas não
gostar de seu arroz, ah, isso não. Era receita de família.
Jamais perdoará o
Aristeu por isso.