terça-feira, 16 de setembro de 2014

Bodas de Ouro


Seu Aristeu estava desenganado. À beira da morte. Não levantava da cama há um mês. Os médicos entregaram os pontos e entenderam que não adiantava prender o velhinho no hospital. Deram-lhe a chamada morte digna: em casa, ao lado de sua velha companheira, a Dona Matilde. 

E ela rezava para que seu marido chegasse com vida, pelo menos até o dia dez de maio daquele ano, data em que completariam cinquenta anos de casados, ou seja, fariam Bodas de Ouro. Pelo menos isso, para contar aos netos, bisnetos e demais gerações. Para tanto, Dona Matilde, todos os dias, acendia 10 velas para Nossa Senhora da Aparecida, e jogava 10 rosas brancas no mar para Yemanjá.  

E assim, com a graça da Santa e do Orixá, Seu Aristeu resistiu até o tal dia. Toda a família – eram seis filhos, 15 netos, 5 bisnetos, mais os maridos e esposas dos filhos, dos netos e até uma namoradinha de um bisneto – estava presente no quarto do quase-defunto, cantando parabéns, com um bolo no pé da cama. 

Ao término da homenagem, quando todos foram embora, Dona Matilde sentou-se na cama ao lado de Seu Aristeu e lhe deu um beijo na testa. Ela estava feliz, apesar da incômoda situação: a iminente morte de seu marido. 

Até aí tudo bem. O problema é que Seu Aristeu resolveu desabafar. Discutir a relação no leito de morte. 

- Matildinha, eu preciso lhe confessar uma coisa. Nunca suportei o seu arroz.

- O quê?

- Aquela papa branca que você me fez comer a vida inteira, e ainda tinha que fazer cara de feliz. Graças a Deus, nunca mais vou precisar comer aquilo de novo.

- ...

- E aquele seu espirro, quando você estava com alergia? Céus, as paredes tremiam, me dava taquicardia. Não sei como não morri de enfarto, nestes 50 anos.

- Então é por isso que você nunca me disse “saúde”?

- Mas nada se compara com a camisola da noite de núpcias, que você usa até hoje. Aquela coisa roxa de bolinhas rosas era o maior broxante, eu tinha que imaginar a Sophia Loren nua pra conseguir dar no coro. Por Deus, Matilde, aquela coisa já tá fedendo, vê se joga fora, porque nem pra pano de chão o negócio serve mais.

- E eu achando que você sentia tesão, Arizinho...

- E tem mais.

- Mais?

- Tem a Paulinha.

- Que Paulinha?

- Aquela empregada que você contratou há uns trinta anos atrás. Nós tivemos um caso. Coisa rápida. Mas inesquecível. Eu nunca esquecerei a Paulinha...

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Dona Matilde saiu do quarto e não voltou mais. 

Seu Aristeu empacotou dois dias depois. Dizem que foi por causa da Dona Matilde, que não acendeu mais vela pra Santa, nem jogou mais flor pra Mamãe Sereia.

Mas ninguém entendeu quando a viúva não foi ao enterro. E acharam estranho o Seu Aristeu ser enterrado vestido com uma velha camisola roxa com bolinhas rosas. Ordens da D. Matilde, disse um dos filhos.   

Na verdade, Dona Matilde não se importou com o fato de nunca ter recebido um “saúde” quando espirrava. Também não se incomodou com o nojo de seu marido pela sua camisola, que o acompanhará por toda a eternidade. Nem o caso extraconjugal do falecido lhe aborreceu.  

Mas não gostar de seu arroz, ah, isso não. Era receita de família.
 
Jamais perdoará o Aristeu por isso.

 

 

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