domingo, 24 de novembro de 2013

Epifania

"Não sou nada.
Nunca  serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo."
(Fernando Pessoa)
 
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epifania
 
quero ser
não quero ter
quero desejar
não quero o poder
quero a quietude da alma
a felicidade pintada na tela
o sorriso divino da menina mais bela
 
quero a canção eterna
pra um coração que espalma
a dor que consterna
o sopro que acalma
 
quero o silêncio em pranto
a boca muda
a pele desnuda
a página em branco
 
quero o querer em pedaços
cortado em fatias
no meio, espaços
recheados com doce de leite
 
um doce deleite
eu quero
 
eu quero o sonho
da viagem mais bela
do gosto do beijo dela
da música que toca a alma
eu quero imaginar a paisagem
da janela, o carinho que acalma
 
não quero o choro
quero a lágrima interna
no brotar da nascente
que seca antes do sol poente
e de enrugar minha testa
 
não quero festa
quero festejar meu pranto
espantar meu espanto
curar a demência do que
não faz sentido, eu quero o proibido
a libido, eu não quero rir
do que não tem graça
nem sentar na praça e esperar a vida
 
não quero comida nem bebida
eu quero a fome e a sede
nada de rede nem de banho quente
a vida que me siga
pois eu vou em frente
e é pra frente que eu vou
 
eu nada tenho e apenas sou
 

domingo, 10 de novembro de 2013

Azeitonas

- Chuchu.
- Chuchu.
- Cenoura.
- Cenoura.
- Tomate.
- Tomate.
- Pimentão..
- Pi... peraí Maria Helena, e a quantidade?
- Como assim?
- Ué, quantos chuchus, cenouras, tomates...
- Ah, põe alguns.
- Não, não e não. Semana retrasada você reclamou que eu comprei pouco. Semana passada, reclamou porque eu comprei muito. Eu quero a quantidade certa, Maria Helena. Pode ir dizendo aí.
- Afffff, então compra quatro de cada, pronto, satisfeito Luiz Roberto?
- Hum. Vai.
- Desinfetante.
- Desinfetante. Qual?
- O de sempre. Sabonete.
- Sabonete. Quantos? Qual?
- Seis. Qualquer um, menos aquele seboso que você comprou da última vez.
- Foi o que você mandou comprar.
- Mas não era pra ser de pêssego! Você sabe que eu odeio pêssego.
- Você odeia comer pêssego, Maria Helena, e o sabonete não é pra comer...
- Mas e o cheiro?
- Acabou?
- Não. Papel Laminado.
- Ah não, isso não, você sabe que eu não consigo encontrar esse troço no mercado, ele se esconde de mim.
- Pergunta pra alguém.
- Eu não vou pagar esse mico. "Moça, onde fica o papel laminado?" O que vão pensar de mim? No mínimo que esse velho tá gagá, mal acha um papel laminado... Olha aqui, Maria Helena, eu tô ficando nervoso, essa lista de supermercado está ficando cada vez mais complicada, olha o que o doutor falou, eu não posso ter emoções fortes, meu coração...
-  Larga de ser fresco, Luiz Roberto. E se vira, eu preciso de papel laminado.
- Ai, o ar já tá me faltando... mais alguma coisa?
- Um vidro de azeitona verde sem caroço com um tomatinho dentro ou ketchup, sei lá, é uma coisinha vermelhinha que tem dentro e fica naquele corredor perto do palmito da Índia e do petit pois...
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- Luiz Roberto?
-
- Luiz Roberto, você tá bem? Fala comigo Luiz Robertoooooooooooooo....... 

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Uma história qualquer

Atrás daquela árvore mora uma história.

Sinto muito, mas não sei contá-la. A árvore bloqueia minha visão.

Pode ser a história de um gnomo em busca do pote de ouro, cuidadosamente guardado por duendes no final do arco-íris. Com fadas e ninfas como coadjuvantes e um besouro gigante como vilão.

Pode ser a história de uma linda menininha pobre e sua fiel companheira, uma bela bonequinha de pano suja e rasgada. Bonequinha maltrapilha, porém muito mais bela que a mais bela das bonecas de luxo das meninas ricas. Mais bela porque certamente é muito mais amada.

Pode ser a história de um menino tímido que vivia em seu quarto escuro na companhia de seus livros de poesia e gibis. De seu violão e seu jogo de botão. Um menino que de tanto querer encontrar o seu caminho, esqueceu de sonhar um sonho que não volta mais.

Pode ser a história de um grão de areia apaixonado pela lua, que se afogou no mar de suas lágrimas diante a impossibilidade de conquistar o seu amor.

Pode ser a sua história. Pode ser a história do Zé, da Maria, do João. Pode ser uma história qualquer.

Não, não pretendo subir na árvore, para descobrir qual é a verdadeira história que tem do lado de lá.

Prefiro minha visão bloqueada.

Assim, se eu estiver feliz posso escrever uma história sobre o amanhecer. Se eu estiver triste, posso tecer versos enaltecendo a beleza do anoitecer.

Com os olhos fechados, posso imaginar a história que eu quiser. 

E a árvore que eu quiser. Como aquela lá da primeira linha. Uma árvore com tronco de chocolate, galhos de banana caramelada, folhas de doce de leite, frutos de brigadeiro e sementes de confete.

E raiz de faz de conta.