quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Diálogo entre pai e filho II - o instrumento musical

- Pai, eu preciso aprender a tocar um instrumento!
 
A frase me pegou no meio de um engarrafamento no elevado Paulo de Frontin, em direção ao Túnel Rebouças.
 
Voltávamos da Gisele, dentista do João, cujo consultório fica na Tijuca. O trânsito era caótico por volta das dez horas da manhã. Como aliás acontece em praticamente toda a cidade do Rio de Janeiro, em qualquer hora do dia.
 
O problema parecia ser de resolução simples. Na escola do João eu havia visto uma propaganda qualquer, colada numa parede qualquer, informando alguma coisa qualquer sobre aula de instrumentos musicais. 
 
Simples, assim como a minha resposta:
 
- Ok, vamos ver se na escola tem aula de violão.
 
Tudo muito simples.
Como a vida deveria ser.
Deveria.
Mas a vida não é o que deveria ser.
A vida é o que é.
 
E simples, o João também não é.
 
O que eu não me dei conta na hora, é que a minha resposta não era apenas simples (para um suposto caso simples). Era também egoísta.
 
Sim, pois acabei decidindo o que ele deveria aprender a tocar.
 
E não é assim que as coisas funcionam com o João. Por que simplificar se podemos complicar?
 
- Pai, eu não quero tocar violão.
 
Ok, a conversa já estava tomando o rumo da complexidade. Não sei por que me surpreendo ainda. - E esse trânsito que não anda!
 
- Mas filho, violão é maneiro, as gatinhas se amarram num cara tocando "Patience" dos Guns´n Roses.
 
A música era nossa conhecida, vivia no rádio do carro.
 
- Pai, violão é muito comum. Todo mundo toca. Eu quero tocar algo mais sofisticado.
 
Pronto: alguma coisa me dizia que eu não iria gostar de saber o que ele queria tocar.
 
Tentei desviar o assunto, quando passamos por três carros batidos, polícia, ambulância do corpo de bombeiros e um monte de gente parada na pista da direita, o motivo do engarrafamento.
 
O trânsito finalmente andou, e começamos a especular como teria sido a batida, se havia gente machucada, etc. Aí ele começou a falar que este era o lado bom de eu dirigir na velocidade de uma tartaruga, pois assim não bateria nunca com o carro, blá, blá, blá...      
 
O fato é que o papo se estendeu até a garagem de casa.
 
Intimamente, estava orgulhoso da minha tática que havia dado certo, pensei que a história do instrumento musical estava esquecida.
 
Mas a vida não é simples (acho que já escrevi isso). A porta de casa ainda nem bem havia se fechado atrás de nós, quando veio o golpe mortal:
 
- Pai, eu quero tocar saxofone!

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os elefantes não esquecem jamais

Juarez trabalhava numa repartição pública. Carimbava papel.

Era um sujeito metódico. Fazia tudo sempre igual, todos os dias. E era meio desconfiado.

Ao seu lado trabalhava o Palhares, que também carimbava papel. O Palhares era um tipo estranho, calado.

Trabalhavam juntos, lado a lado, há quinze anos, de segunda a sexta-feira. Mas o relacionamento entre eles era frio. Um nada sabia da vida do outro.

Os diálogos eram banais. Vagos.

- Bom-dia (ou boa-tarde).
- E aí, beleza?
- Tranquilo.
- Que calor, hein? (ou "que frio, hein?)
- Tá horrível.
- E o Flamengo? Que timeco!
- É, um fiasco.
- Aceita um café?
- Não, obrigado.
- Aceita uma água?
- Sim, obrigado.
- Bom final de semana.
- Igualmente.

E fora assim, durante exatos quinze anos.

Um dia, o Palhares falou a seguinte frase: "Os elefantes não esquecem jamais."

O carimbo na mão do Juarez parou no ar e não completou seu objetivo. Seu corpo começou a tremer. Suas axilas começaram a suar. Por que ele falou aquela frase? Elefantes, esquecem e jamais são palavras que nunca foram ditas naqueles quinze anos de trabalho.

Era como se houvesse um código de conduta entre eles, onde algumas palavras eram permitidas e outras proibidas.

E o Palhares havia acabado de quebrar este código. Mais: foram três palavras do tipo "proibidas" na mesma frase. De uma só vez.

Juarez ficou inconsolável. Por que o Palhares falou aquilo? E que diabos o Palhares queria dizer com aquilo? Será que ele, Juarez, esqueceu alguma coisa? E se esqueceu, o Palhares estava querendo dizer que um elefante é melhor do que ele? Ser comparado a um elefante? Não, isso era demais.

Juarez se levantou e deu uma carimbada com força na mesa do Palhares, que tomou um susto e o olhou por cima dos óculos sem entender nada.

Com a axilas suadas e os olhos esbugalhados de ódio, Juarez disparou:

- Elefante é a senhora sua mãe!

Juarez saiu da sala batendo a porta. Foi até sua chefia e solicitou sua transferência imediata para outro setor. Alegou que a sua relação com seu colega de trabalho estava saturada. Que o Palhares estava ficando gagá. E sugeriu que o encaminhassem para um psicoterapeuta.

Depois disso, Juarez nunca mais soube do Palhares.

Mas assim como um elefante, jamais o esqueceu.