quinta-feira, 12 de março de 2015

Escondidinho de carne seca

Rosalva era uma mulher linda. O Chico que o diga. Dois anos dando em cima dela, e nada!
Mas, finalmente, suas cantadas começaram a surtir efeito.

Descobriram que tinham algo em comum: a culinária. Esse gosto pela arte de cozinhar acabou unindo os dois. Combinaram, então, dois jantares, um cada casa, começando pela do Chico.

Era a grande chance dele, enfim, de mostrar para os colegas de trabalho, que sua batalha pela funcionária mais bonita da empresa não fora em vão. E as aulas de culinária que resolveu fazer num dado momento da vida, também não.

Lógico que ele não poderia decepcionar. Optou, então, em preparar a sua especialidade: strogonoff de camarão com batata sotê. Um vinho branco italiano para acompanhar e, como sobremesa, profiteroles com sorvete de creme.

Sem erro. A noite foi agradável e seu prato um sucesso. Rosalva adorou. Só teve um porém. Aproveitando o momento em que ela já estava mais "altinha" - efeito do vinho - o Chico tentou chegar junto. Sem êxito. Mas nada estava perdido, pois ela apenas pediu para ele esperar até o jantar da casa dela.

Os colegas do escritório vibraram com a história. E aguardaram tão ansiosos quanto o Chico, pela tal noite. Será que ia rolar?

Ao chegar na casa de Rosalva, nosso herói ficou louco: ela usava um vestido com uma fenda que ia até a... deixa pra lá. O jantar seria à luz de velas. E o prato, um escondidinho de carne seca.

Chico começou a comer. O creme estava uma delícia, mas ele já estava na metade do prato e nada da carne seca. A comida acabou e, que diabos, cadê a carne seca?!

Quando Rosalva indagou se estava bom e se ele queria repetir, é claro que ele disse sim, que estava ótimo, e queria mais. Mas nem uma palavra sobre a estranha falta da carne seca.

O segundo prato, após uma busca incessante por um fiapinho qualquer da danada, acabou, sem nenhuma pista dela.

Chico não se aguentou:

- Querida, muito bom o seu escondidinho. Só tenho uma dúvida, assim, bem pequena. Enquanto eu comia, eu imaginava onde é que poderia ter ido parar a carne seca.
- Chico, o prato é escondidinho de carne seca. Você acha que eu ia dar esse mole de esconder a carne seca no escondidinho?
- Ela não está no escondidinho?
- Claro que não.
- Então... cadê ela?
- Escondida, ué!
- Em algum lugar, que não no escondidinho? É isso?
- Sim.

Chico se levantou da mesa, agradeceu o jantar, se despediu e foi embora.

Os colegas de trabalho ficaram pasmos com a história. E apoiaram o Chico. Realmente, uma mulher que esconde a carne seca do escondidinho de carne seca em outro lugar, que não no escondidinho, não merece muita confiança. 

O que essa mulher não seria capaz de esconder de um homem.  
   

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Bodas de Ouro


Seu Aristeu estava desenganado. À beira da morte. Não levantava da cama há um mês. Os médicos entregaram os pontos e entenderam que não adiantava prender o velhinho no hospital. Deram-lhe a chamada morte digna: em casa, ao lado de sua velha companheira, a Dona Matilde. 

E ela rezava para que seu marido chegasse com vida, pelo menos até o dia dez de maio daquele ano, data em que completariam cinquenta anos de casados, ou seja, fariam Bodas de Ouro. Pelo menos isso, para contar aos netos, bisnetos e demais gerações. Para tanto, Dona Matilde, todos os dias, acendia 10 velas para Nossa Senhora da Aparecida, e jogava 10 rosas brancas no mar para Yemanjá.  

E assim, com a graça da Santa e do Orixá, Seu Aristeu resistiu até o tal dia. Toda a família – eram seis filhos, 15 netos, 5 bisnetos, mais os maridos e esposas dos filhos, dos netos e até uma namoradinha de um bisneto – estava presente no quarto do quase-defunto, cantando parabéns, com um bolo no pé da cama. 

Ao término da homenagem, quando todos foram embora, Dona Matilde sentou-se na cama ao lado de Seu Aristeu e lhe deu um beijo na testa. Ela estava feliz, apesar da incômoda situação: a iminente morte de seu marido. 

Até aí tudo bem. O problema é que Seu Aristeu resolveu desabafar. Discutir a relação no leito de morte. 

- Matildinha, eu preciso lhe confessar uma coisa. Nunca suportei o seu arroz.

- O quê?

- Aquela papa branca que você me fez comer a vida inteira, e ainda tinha que fazer cara de feliz. Graças a Deus, nunca mais vou precisar comer aquilo de novo.

- ...

- E aquele seu espirro, quando você estava com alergia? Céus, as paredes tremiam, me dava taquicardia. Não sei como não morri de enfarto, nestes 50 anos.

- Então é por isso que você nunca me disse “saúde”?

- Mas nada se compara com a camisola da noite de núpcias, que você usa até hoje. Aquela coisa roxa de bolinhas rosas era o maior broxante, eu tinha que imaginar a Sophia Loren nua pra conseguir dar no coro. Por Deus, Matilde, aquela coisa já tá fedendo, vê se joga fora, porque nem pra pano de chão o negócio serve mais.

- E eu achando que você sentia tesão, Arizinho...

- E tem mais.

- Mais?

- Tem a Paulinha.

- Que Paulinha?

- Aquela empregada que você contratou há uns trinta anos atrás. Nós tivemos um caso. Coisa rápida. Mas inesquecível. Eu nunca esquecerei a Paulinha...

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Dona Matilde saiu do quarto e não voltou mais. 

Seu Aristeu empacotou dois dias depois. Dizem que foi por causa da Dona Matilde, que não acendeu mais vela pra Santa, nem jogou mais flor pra Mamãe Sereia.

Mas ninguém entendeu quando a viúva não foi ao enterro. E acharam estranho o Seu Aristeu ser enterrado vestido com uma velha camisola roxa com bolinhas rosas. Ordens da D. Matilde, disse um dos filhos.   

Na verdade, Dona Matilde não se importou com o fato de nunca ter recebido um “saúde” quando espirrava. Também não se incomodou com o nojo de seu marido pela sua camisola, que o acompanhará por toda a eternidade. Nem o caso extraconjugal do falecido lhe aborreceu.  

Mas não gostar de seu arroz, ah, isso não. Era receita de família.
 
Jamais perdoará o Aristeu por isso.

 

 

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

eu e a lua

distraídos, eu e a lua
numa noite escura e nua
despida de estrelas e certezas
vestida com alegrias e tristezas

pensativos, eu e a lua
em busca da poesia vaga e crua
ainda que com rimas óbvias e banais
estrofes tolas e carnais

e assim ficamos, eu e a lua
sonhando a estrada que se insinua
esperando a rosa amarela se abrir
o lírio da montanha sorrir

e até que o vento leve os versos desta poesia
e suas palavras misturadas com o sabor da maresia
um poeta, distraído e pensativo, continua...

no infinito da eternidade, eu e a lua.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

epifania parte II


então, viver é isso
contrato de adesão
ser feliz é a obrigação
ter querer possuir
a todo custo
contra tudo e contra todos
rir dançar cantar
manter o ritmo
seguir o rebanho
beber comer  fumar
kkkkk hihihi hahahaha
funk cerveja futebol
novela das oito carnaval...

então, viver é só isso
e pronto
é só ser normal
fazer o que todos fazem
tudo sempre igual
falar discutir gritar
palavrões e coisa e tal
depois fazer as pazes
tem a mesa do bar 
pagode no fundo do quintal...

então, viver é somente isso
e mais nada
é encontrar alguém
um sexo oposto ou não
ficar beijar se enrolar
oi tudo bem
tchau até mais
amanhã é outro dia
amor pra quê
pra que serve poesia?
 
então, viver é isso...
 
confesso que falhei
confesso meu fracasso
confesso que tentei

tentei beber
no copo deste projeto
de alegorias e fantasias
e o gosto de mel me embrulhou
a alma

até quis ser um igual
compartilhar desta felicidade insana
confraternizar com a estupidez santificada
da sociedade mundana
comemorar o ridículo do absurdo
da normalidade banal

agora o que resta
é encarar o espelho e tentar
montar o quebra-cabeças
do seu reflexo quebrado
em pedaços de dúvidas
do que não quis,
do que não pude
ou do que não soube ser

e assim
sob a chama bruxuleante
de uma vela que insiste
em não apagar
chegar
a um improvável diagnóstico
para uma cura vadia
que me faça beber
com nojo e vontade
dessa infeliz taça 
de felicidade coletiva

um verdadeiro brinde
ao fracasso do meu fracasso


quarta-feira, 2 de julho de 2014

elucubrações

se eu fosse Deus...

veria o universo através
da pétala de uma flor

não correria o risco
de vê-lo sem amor

todo o infinito
na palma de minha mão

toda a eternidade
numa fração de segundo

mas sou, num mar de areia
apenas um grão

e que diferença faço nesse mundo?

se eu fosse Deus
viveria a imaginar...

teria ideias secretas
e as esconderia
num mágico lugar:

                             [o tolo coração dos poetas

segunda-feira, 2 de junho de 2014

borboleta

da janela de casa
avisto a montanha, a palmeira
e o sabiá

rezo neste altar particular

numa manhã ensolarada
pousou-me no braço
uma borboleta
que se pôs a me observar

retribui o olhar
sem nada poder lhe falar

ficamos os dois agradecidos
em silêncio profundo
dois universos distintos
juntos no mesmo mundo

nenhum de nós queria o adeus
diante da inusitada presença
de Deus


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Mamãe

No início era assim:
 
"Bilu-bilu, cadê o bebezinho lindo da mamãe?; não chora, já vou dar o leitinho; vamos tomar um bainho gostoso?; de quem é esse queixinho? é da mamãe..."
 
Depois:
 
"Já escovou os dentes? Tá na hora de tomar banho; se não comer tudo não ganha sobremesa, quero ver o prato limpo; chega de comer chocolate!"
 
E depois...
 
"Para de jogar bola, olha as minhas samambaias! Já fez o dever o casa?; Não é possível, não tem nem dez minutos que você sentou pra estudar e já tá chutando essa bola de novo?; Chega de comer chocolate!"
 
Continuando...
 
"Você não estuda e tira sete e meio... se estudasse tiraria dez!; A nota dos outros não me interessa, me interessa a sua, você é que é meu filho e não os outros!; Vou falar com o seu pai que você só sabe tocar violão e ler Homem-Aranha. E para de comer chocolate!"
 
E os anos passam...
 
"Você já mediu a sua pressão hoje? Quanto tempo você não faz um exame de sangue?; Tem que mandar o seu filho ir estudar. Ele não pode ficar no computador o dia inteiro. Ele não estuda e tira nota boa, já pensou se ele estudasse? Ele precisa se alimentar melhor, não pode ficar comendo só macarrão com carne moída. E ele tem que parar de comer chocolate."
 
Pois é...
 
Essa é a minha mãe: a expressão do amor mais puro e verdadeiro que eu conheci nessa vida.
Sentimento que dispensa palavras e traduz-se na mais bela poesia.
Se amor tem nome ele se chama Josette.
 
Te amo, mãe!

Ah, só mais uma coisa: você também precisa parar de comer chocolate! ;)